Ruy Guerra, com Aos Pedaços, parece operar em um território onde o caos e a memória se misturam de forma quase indissociável. O filme, que carrega em si uma fragmentação narrativa como reflexo de suas personagens, tenta estabelecer um diálogo entre o particular e o coletivo, mas, em certos momentos, se perde nas próprias fissuras que propõe explorar. Não ao ponto de esvaziar suas questões, mas sim de as tornar quase etéreas, desprovidas de uma ancoragem emocional mais palpável.
Há uma busca incessante por um lirismo que, em teoria, deveria emergir das rachaduras dessa memória coletiva. A câmera de Guerra parece hesitar entre o testemunho e a poesia, criando uma atmosfera que, embora visualmente interessante, por vezes se apresenta excessivamente asséptica. O filme parece ter medo de sujar as mãos, de mergulhar com mais coragem na angústia de suas personagens. A sensação é de que estamos diante de uma desconstrução que não chega a se completar, deixando o espectador nesse limbo entre o fascínio e a frustração.
O roteiro, que flerta com o experimentalismo, tenta se equilibrar entre o íntimo e o histórico, mas acaba tropeçando na própria tentativa de costurar essas camadas. Há passagens em que a montagem se permite brincar com o tempo, instaurando uma sensação de colagem de memórias que funciona pontualmente, mas não o suficiente para sustentar a proposta do longa. A sensação é de que há uma busca por sentido no não-sentido, mas que essa busca não encontra um eixo sólido para se apoiar.
Ainda assim, há um charme melancólico na forma como Guerra conduz suas personagens por esse labirinto de memórias estilhaçadas. O som, por exemplo, surge como um agente inquietante, quase como um sussurro constante que insiste em relembrar algo que não se consegue precisar. É nesse espaço de indefinição que o filme encontra seus melhores momentos, especialmente quando se permite simplesmente existir no fluxo dessas recordações esparsas.
Talvez o maior mérito de Aos Pedaços esteja na coragem de não se render a uma narrativa convencional, ainda que essa escolha acabe enfraquecendo a sua força discursiva. Ruy Guerra, com sua experiência e olhar sempre inquieto, entrega um filme que, como o próprio título sugere, se constrói e se desconstrói em pedaços. O problema é que, ao tentar juntar essas partes, o todo não alcança a potência que se intui nas entrelinhas. Fica a impressão de um quebra-cabeça que decidiu abraçar suas lacunas e, nesse processo, se tornou refém delas.