O filme Praia Formosa, de Julia de Simone, estabelece um diálogo instigante entre passado e presente, escavando não apenas os vestígios materiais de uma história dolorosa, mas também as camadas emocionais e sociopolíticas que permanecem assombrando o Brasil contemporâneo. Partindo de uma perspectiva de terror arqueológico, a obra transcende o tradicional para propor uma experiência híbrida e fragmentada, que é tão inquietante quanto necessária.
O núcleo temático do filme — a exposição literal e simbólica das marcas deixadas pela escravidão no contexto da reforma urbanística do Porto Maravilha — é tratado com coragem e sensibilidade. Julia de Simone não permite que o passado permaneça acomodado ou enterrado; ela o desenterra, confronta, e força o público a encarar aquilo que muitas vezes é ignorado. Este gesto ressoa como um ato de resistência, uma tentativa de interromper o esquecimento e criar espaço para reflexão.
Embora este seja o primeiro esforço ficcional da cineasta, Praia Formosa rejeita estruturas narrativas tradicionais em favor de uma abordagem fragmentada, que ecoa a ideia de peças quebradas de um objeto desenterrado. Essa escolha é eficaz para refletir a forma como o passado é reconstituído: nunca de forma completa, mas através de fragmentos — documentos históricos, performances, e encenações que se justapõem ao vazio de um presente ainda marcado por essas feridas.
A construção estética do filme é tão multifacetada quanto seu tema. As cenas da personagem solitária caminhando por espaços desertos, como túneis de luz fria e ruas vazias, evocam uma sensação de isolamento e desolação que captura a ausência tanto física quanto espiritual de vidas perdidas e esquecidas. Esses momentos performáticos contrastam com os resgates históricos e depoimentos, criando uma textura audiovisual rica e desconcertante.
Ao fundir performance, documentação, pesquisa e ficção, Julia de Simone desafia as categorias convencionais do cinema. Essa abordagem, embora possa afastar espectadores que esperam uma narrativa mais linear, é coerente com a intenção do filme de perturbar e provocar. Cada fragmento do filme carrega um significado próprio, mas é na justaposição que eles encontram maior impacto.
A direção de Julia de Simone se destaca pela ousadia de enfrentar o trauma histórico sem oferecer respostas fáceis ou uma catarse reconfortante. Ao invés disso, Praia Formosa funciona como um ritual cinematográfico de exumação, onde a diretora se torna uma arqueóloga não apenas de objetos, mas de memórias. Sua visão é deliberadamente desconfortável, como se buscasse criar uma ponte entre o espectador e o peso tangível da história.
No entanto, essa abordagem arriscada pode alienar parte do público. O ritmo do filme e sua estética minimalista — marcada pelo vazio e pela repetição — podem ser interpretados como difíceis ou excessivamente abstratos. Ainda assim, essa escolha estética é um reflexo apropriado da complexidade do tema e do estado emocional que ele evoca.
O timing de Praia Formosa é particularmente relevante. Em um Brasil onde o passado colonial continua a influenciar profundamente questões sociais, econômicas e culturais, a obra de Julia de Simone atua como um espelho incômodo. Ela desafia a amnésia histórica, revelando que o que está enterrado nunca desaparece completamente.
O conceito de “terror arqueológico” é brilhantemente explorado, pois o filme transforma a escavação do passado em uma experiência assombrosa e perturbadora. As cicatrizes deixadas pela escravidão, representadas pelos espaços comerciais onde pessoas eram tratadas como mercadorias, adquirem uma dimensão quase fantasmagórica — são mais do que ruínas; são testemunhas silenciadas de um horror ainda presente.
Praia Formosa é uma obra que mistura ousadia criativa e relevância histórica de forma singular. Embora sua fragmentação formal e seu tom desolador possam não agradar a todos, é exatamente essa ruptura com as convenções que dá ao filme sua força e autenticidade. Julia de Simone cria um convite — ou, talvez, uma convocação — para refletir sobre as histórias que insistimos em enterrar e sobre as formas como o passado continua a moldar nosso presente.
Praia Formosa é um filme que não apenas narra, mas também performa e questiona, tornando-se não apenas um produto artístico, mas uma intervenção política e emocional no tecido histórico brasileiro.