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O Norte Não É Estereótipo, Nem Cota de Trending Topic

Existe uma linha tênue entre rir de algo e rir de alguém. E, quando falamos do Norte do Brasil, essa linha nem existe — ela já foi ultrapassada faz tempo, sem nenhum constrangimento. O recente comentário do canal Diva Depressão sobre o Festival da Cunhã, evento idealizado pela ex-BBB Isabelle Nogueira, não é só um deslize ou uma piada fora de contexto. É mais um capítulo de um roteiro cansado que reforça, sistematicamente, o apagamento do Norte no imaginário coletivo brasileiro.

E não se trata aqui de defender o festival de forma cega. Há sim críticas possíveis, principalmente no quesito de divulgação, que mesmo tendo chegado a grandes emissoras e veículos nacionais, parece nunca ser o suficiente. Nunca é. Porque, quando o evento é no Norte e para o Norte, a régua da validação é sempre mais alta, sempre mais exigente. O que lá no eixo Rio-São Paulo ganha aplauso pela proposta, aqui precisa se justificar três vezes mais para sequer ser levado a sério.

É impossível ignorar o que foi construído ali. E não, isso não é — nem nunca foi — sobre transformar a nossa cultura em entretenimento descartável, ou sobre enfeitar o feed de quem veio de fora. A chamada “imersão amazônica”, que aconteceu nesses dois dias, não se resume a uma brincadeira turística. É, sobretudo, uma ferramenta. Uma estratégia muito bem pensada que se utiliza, sim, dos números e do alcance desses influenciadores e artistas, mas para atravessar fronteiras. Para que, pelos olhos de quem vem de fora e se permite experienciar esse bioma, essa cultura e esse povo, o Brasil inteiro — e quem sabe até além — veja, conheça e entenda quem somos. Que perceba que aqui não tem meme, não tem piada, não tem maloca nem palafita caricata: tem gente. Tem cultura. Tem potência. E tem uma festa que, muito além de música e dança, promove movimentos sociais, ambientais e culturais que, há muito, deveriam estar no centro das discussões.

E ironicamente, o Festival da Cunhã fez exatamente aquilo que se cobra tanto do Norte: celebrou a nossa cultura, nossos artistas, nossa identidade. Foi um palco para a arte amazônica, para a nossa música, para as nossas tradições. E, mais do que isso, arrecadou quase 30 toneladas de alimentos para famílias vulneráveis no Amazonas. Mas, mesmo assim, virou meme. Virou piada fácil.

Além disso, o festival promoveu o plantio de mais de 750 árvores nativas em áreas degradadas da Floresta Amazônica, em parceria com a startup Tree Earth. Cada árvore foi registrada por meio de aplicativo, garantindo monitoramento por celular e certificado blockchain, gerando um “token verde” que assegura transparência, rastreabilidade e impacto real.

Certa vez, um amigo da Bahia me disse, sem rodeios, que quando pensa no Amazonas, não vem imagem nenhuma à cabeça. Nem de Manaus, nem dos interiores, nem de absolutamente nada. Isso é sintomático. E é sintomático porque, dentro do próprio Norte, somos pouco estimulados a conhecer nossa história, nossa cultura e os próprios territórios. Quando não somos levados a sério nem por quem nos governa — que insiste em importar modelos de cultura, de entretenimento e de desenvolvimento econômico que não dialogam com a nossa realidade —, fica fácil entender por que o Brasil inteiro acha que aqui só tem mato, maloca e palafita.

Enquanto comentávamos sobre essa piada rala, um assunto muito mais grave avançava no Congresso Nacional: o projeto que estende os mesmos benefícios fiscais da Zona Franca de Manaus para o Distrito Federal e seu entorno. Isso não é só uma questão econômica. É sobre apagar, mais uma vez, as particularidades do Norte. A Zona Franca de Manaus nunca foi um privilégio. Ela é uma compensação a um território que vive desafios logísticos, ambientais e econômicos únicos no país. Ao replicar esse modelo para o DF, o governo não só esvazia a nossa economia como também reafirma que, mais uma vez, o Norte não importa.

O que isso tem a ver com o comentário sobre o Festival da Cunhã? Tudo. Porque não somos levados a sério. Nem como sujeitos culturais, nem como sujeitos econômicos, nem como povo. O Norte, quando muito, serve para ser folclorizado, fetichizado ou viralizado — nunca para ser respeitado como potência.

A gente não precisa estar nos trending topics para existir. Nossa cultura não é figurante no roteiro do Brasil. A nossa música, os nossos povos, os nossos artistas e os nossos territórios não são meme, nem caridade, nem cota. São potência. E quem insiste em não enxergar, quem prefere rir em vez de entender, não está apenas sendo ignorante — está sendo cúmplice de um projeto histórico de apagamento.

Se tem algo que me revolta não é hate na internet, não é meme, não é número. É esse viralatismo institucionalizado que faz com que o Brasil só olhe pro Norte quando quer folclorizar, satirizar ou explorar. E, se o Norte não cabe no imaginário desse país, então talvez o problema nunca tenha sido a gente. O problema é quem se recusa a olhar.

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Lucas Cine

Redator chefe de entretenimento da Update Manauara. Crítico de cinema, apresentador do Lucas Cine Podcast e fã de terror.

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