Milton Santos mais atual que nunca: Zona Franca no DF é Brasil concentrado no volume máximo

A escolha de trazer Milton Santos para esta análise não é apenas um tributo intelectual, mas uma necessidade crítica. O geógrafo baiano foi um dos primeiros a escancarar as entranhas do modelo desigual de desenvolvimento territorial no Brasil. Ao descrever a “região concentrada” — o eixo privilegiado entre Sul e Sudeste onde se acumulam infraestrutura, capital e poder decisório — Santos revelou como o território brasileiro é organizado não para integrar, mas para excluir. A proposta de criação de uma nova Zona Franca no Distrito Federal, portanto, não é apenas uma medida econômica: é um gesto político que reforça essa lógica perversa de concentração, ignorando os desafios históricos de regiões como a Amazônia. Usar suas ideias é, nesse sentido, uma forma de confrontar esse projeto seletivo de país que insiste em tratar o Norte como margem.


Tem coisas que só o Brasil mesmo. E não estamos falando de jabuticaba ou jeitinho. Estamos falando de um feito ainda mais audacioso: transformar o Distrito Federal — a mais simbólica bolha de poder da República — em polo industrial incentivado. Isso mesmo, Brasília, que até hoje se destaca por legislar, julgar e circular planilhas, agora quer brincar de Zona Franca.


A proposta, vendida como uma espécie de “democratização” dos benefícios fiscais, é daquelas que só ganham corpo num país onde o mapa sempre teve zonas preferenciais — não por estratégia territorial, mas por conveniência política. E quem já estudou o Brasil com o olhar crítico de Milton Santos, sabe: não há território neutro nesse país. Tudo é escolha. E essa, mais uma vez, aponta na direção do já privilegiado.


Enquanto isso, Manaus — aquela cidade que resistiu entre rios, floresta e esquecimento — observa mais uma tentativa de sabotagem institucional travestida de modernidade. A capital amazonense construiu um modelo complexo, adaptado à sua realidade, que ainda sustenta milhares de empregos e garante alguma autonomia econômica à região. Mas claro, como sempre, o desconforto aparece quando o Norte tenta deixar de ser apenas fornecedor de borracha, minérios, água e paisagem.


No fundo, a proposta revela uma obsessão nacional que Milton Santos descreveu com clareza: a de concentrar tudo — recursos, infraestrutura, poder — numa única faixa privilegiada do território. A tal “região concentrada”, onde a modernidade chegou com tapete vermelho e internet banda larga, segue acumulando funções enquanto o restante do país corre atrás do prejuízo com vela na mão.


Brasília não produz nem exporta. Mas vai receber os mesmos incentivos que foram criados para estimular uma área isolada geográfica e historicamente dos grandes circuitos econômicos. É como decidir premiar o aluno do centro da sala, com ar-condicionado, água mineral e explicador particular, enquanto pedem ao aluno do fundo — aquele com goteira na cabeça e luz intermitente — que “compita de forma justa”.


Essa decisão escancara uma velha lógica de país seletivo, onde o desenvolvimento só se concretiza para quem está bem posicionado no jogo. Fala-se em integração nacional, mas as ações dizem outra coisa: as margens seguem na função de fornecer mão de obra, matéria-prima e justificativa ambiental para discursos em conferências internacionais. Já os centros, esses continuam acumulando os benefícios do Estado, da política, da infraestrutura — e agora, vejam só, também dos incentivos fiscais.


É curioso, para não dizer irônico, que tudo isso se apresente como “inovação”. Mas como dizia aquele professor baiano que cartografou nossas desigualdades com régua e indignação: o Brasil só inova para manter tudo mais ou menos no mesmo lugar. Dão o nome de desenvolvimento a um plano que, no fundo, só atualiza a velha cartilha do país dos poucos e bons: o Brasil que pensa para o Sudeste, lucra no Centro-Oeste e esquece o Norte.


Faz tempo que se percebe que esse modelo de país, embora negado em discurso, nunca saiu de cena. A construção de um Brasil fragmentado, onde o acesso ao progresso depende do CEP, não é novidade para quem leu Por uma outra globalização ou O espaço dividido. Continuamos com um Norte que precisa provar todos os dias sua utilidade para não ser apagado. Um Norte que depende de incentivos não como luxo, mas como compensação mínima diante de uma lógica de desenvolvimento que o marginaliza sistematicamente.


E tudo isso acontece num momento em que o discurso sobre a Amazônia nunca foi tão global. Querem preservar a floresta? Apoiar os povos da região? Valorizar o bioma? Pois bem, retirar dela as poucas ferramentas econômicas que possui vai na direção oposta. Criar uma Zona Franca no DF enquanto se fragiliza a de Manaus é como declarar amor à floresta enquanto se afia o machado.


No final das contas, Brasília legisla, Brasília lucra, Brasília respira. Já o resto do Brasil, principalmente aquele escondido nas bordas do mapa, que sustente o país com seus rios, florestas e promessas de compensação que nunca se cumprem. O problema não é criar uma Zona Franca no DF. O problema é o que isso representa: um novo capítulo do velho enredo onde o Brasil é feito para poucos — e sempre os mesmos.


Se houvesse uma estátua no meio da Esplanada que pudesse resumir essa história, ela não precisaria falar. Bastaria estar ali, de bronze polido e semblante cínico, olhando fixamente em direção ao Norte, com os braços cruzados — não por orgulho, mas por descaso calculado. Ao seu redor, turistas tirariam fotos sem entender que aquele monumento não homenageia um herói, mas sim o projeto silencioso de um país feito à imagem e semelhança de si mesmo: centralizador, seletivo, e profundamente confortável em excluir. Ela não apontaria para a floresta, nem para os povos que dela vivem, nem para os empregos ameaçados. Apenas sussurraria com ironia — talvez só para quem ainda insiste em acreditar na Constituição —:


“E vocês ainda acham que isso aqui é uma federação?”


E no final, tudo segue como sempre: Brasília legisla, Brasília lucra, Brasília respira aliviada. O resto do Brasil? Só serve mesmo para encher mapa e fornecer tema de redação do Enem.

Luis Cunha

Geógrafo, especialista em Gestão de Projetos e mestrando em Geografia, com foco em Planejamento Urbano, Economia e Meio Ambiente.

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