O cinema amazonense marca presença na 78ª edição do Festival de Cannes não apenas nas telas, mas também na cobertura crítica. Ivanildo Pereira e Danilo Aerosa já estão em Nice, na França, e no domingo (12) seguem para Cannes, onde farão a cobertura oficial do maior festival de cinema do mundo representando o site Cineset. O evento tem início na terça-feira, 14 de maio, e segue até o dia 24. Esta será a terceira cobertura presencial do Cine Set em Cannes. Em 2017, o site foi representado por Lucas Pistilli; já em 2024, Camila Henriques marcou presença na Croisette durante a passagem da atriz amazonense Isabela Catão pelo tapete vermelho. Agora, em 2025, o time será formado pelos críticos Danilo Areosa e Ivanildo Pereira Jr., ambos de Manaus — e, pela primeira vez, em dupla, algo raro até mesmo entre os grandes veículos brasileiros. A presença do Brasil também será destaque nesta edição: o país será o país de honra da Marché du Film, maior mercado internacional de filmes, realizado paralelamente ao festival. A programação inclui ações voltadas à diversidade e à força do audiovisual brasileiro em suas múltiplas regiões e linguagens — uma oportunidade histórica de visibilidade para o cinema feito no Norte, no Nordeste e em outros centros fora do eixo Rio-São Paulo. A presença amazonense em Cannes vai além do jornalismo. O cineasta Bernardo Ale Abinader representa o Norte com o curta Como Ler o Vento, vencedor do Festival de Gramado, agora selecionado para a prestigiada La Factory des Cinéastes, vitrine internacional para novos talentos. Além dele, a produtora e diretora Mariana Brennand será homenageada, e há expectativa para a exibição do curta O Riso e a Faca, de Pedro Pinho, ainda sem data definida. Outro destaque é a aguardada estreia de O Agente Secreto, novo filme de Kleber Mendonça Filho estrelado por Wagner Moura, que promete movimentar a Croisette com um olhar político e cinematográfico já característico da obra do diretor pernambucano. Entre as produções mais esperadas do festival estão a première mundial de Missão: Impossível 8 – Acerto de Contas: Parte 2, que deve contar com a presença de Tom Cruise, e Alpha, novo filme de Julia Ducournau, vencedora da Palma de Ouro em 2021 por Titane. Richard Linklater também retorna com Nouvelle Vague, longa que recria as filmagens de Acossado, de Jean-Luc Godard, em 1960. Já Ari Aster, de Beau Tem Medo e Hereditário, concorre à Palma com Eddington, outro nome de peso que torna a disputa ainda mais intensa. A premiação do festival, segue criando um caminho como um dos principais termômetros da temporada de premiações internacionais posteriores. Acompanhe a cobertura completa no site www.cineset.com.br e nas redes sociais do Cine Set durante os 11 dias de festival.
Crítica: Revisão Missão: Impossível: Nação Secreta | O Jogo das Sombras
Selo: Arquivo IMF – Capítulo 5 A frase “Ethan Hunt é a manifestação física do destino” marca e define muito bem quem é e sobre o que é Missão: Impossível, jogando todos os personagens em um jogo com data de validade, de aparências e da impossibilidade da conclusão dos tais destinos pré-postos por alguém (ou uma entidade maior). As cláusulas e termos são estabelecidas de maneira tão estreita que não há final feliz para nenhum dos lados. É aí que se encontra a grande interseção da figura de Hunt, não como um super-herói, mas como um evitador e catalisador de problemas sem soluções definitivas. Christopher McQuarrie estreia na franquia após, três anos antes, ter trabalhado com Tom Cruise em Jack Reacher (2012), estabelecendo um vínculo com o astro e com sua linguagem de ação, que mescla um neo-noir que valoriza mais o micro e seus planos fechados do que necessariamente quando o escopo abre para sequências mais extensas — ainda que aprecie essas também. McQuarrie controla bem esses espaços e sabe utilizá-los narrativamente, empregando-os como ferramentas cheias de dispositivos para mostrar a imprevisibilidade de seus personagens e o quanto são vivos. Uma ótima adição à equipe da IMF e ao elenco de Missão: Impossível é Rebecca Ferguson, que, após o desastre de Hércules (2012), traz aqui Ilsa Faust, uma Femme Fatale imponente que utiliza olhares e linguagem corporal como armas. Uma cena que exemplifica bem isso ocorre quando ela tira a camisa em segundo plano: vemos suas costas, a tensão sobe pelo que pode acontecer, e tudo isso é comunicado pelo modo como ela desdobra seu corpo, transmitindo intenções sem precisar de diálogos. O filme brinca com os sets pieces criados para sequências estendidas, levando as situações-limite aos próprios limites cênicos, como se não houvesse mais espaço para a câmera ir e vir. A atmosfera é sufocante quando precisa ser, movimentada e entusiasmada quando deseja ser, sexy e provocante nos momentos mais tensos, trazendo um ar diferente para a adrenalina. Escrito e dirigido por McQuarrie, Missão: Impossível – Nação Secreta é um capítulo mais denso desse jogo de sombras, no qual ninguém pode ser quem realmente diz ser, elevado à enésima potência. O filme faz acenos cinematográficos a opera de Dario Argento, ao cinema maneirista de Brian De Palma no primeiro capítulo e à estilização quase afetada de J.J. Abrams, que ecoa pela produção da Bad Robot — mas nada disso compromete a identidade do cinema de Christopher McQuarrie.
Revisão Missão: Impossível: Protocolo Fantasma | A Reinvenção da Saga
Selo: Arquivo IMF – Capítulo 4 Dizem que Missão: Impossível 3, dirigido por J.J. Abrams, é o ponto de virada onde a franquia se moldou ao que conhecemos hoje. No entanto, é em Protocolo Fantasma que essa reinvenção realmente se consolida. Sob a direção de Brad Bird e com roteiro de Josh Appelbaum e André Nemec, o filme encapsula os signos estabelecidos nos três capítulos anteriores, resgatando e reestruturando a abordagem do universo de Ethan Hunt e da IMF. Brad Bird, conhecido por suas animações aclamadas como O Gigante de Ferro (1999), Os Incríveis (2004) e Ratatouille (2007), traz para o live-action sua habilidade em construir narrativas centradas em equipes disfuncionais que se unem diante de ameaças maiores. Essa expertise se traduz em Protocolo Fantasma, onde Ethan Hunt é apresentado não apenas como um agente impetuoso, mas como alguém moldado pelo amor e pela busca por dignidade, contrastando com sua representação anterior. Um dos grandes trunfos do filme é o tom cômico que se destaca graças à presença de Simon Pegg, uma das melhores adições à equipe. Seu personagem, Benji Dunn, traz um alívio cômico natural que não compromete o peso da trama. Pegg consegue moldar a dinâmica ao seu redor, injetando leveza sem nunca banalizar o perigo. Essa abordagem é especialmente notável nas sequências que mesclam ação, adrenalina e humor de maneira equilibrada, seja pela fisicalidade cômica ou pelas tiradas precisas que aliviam a tensão. Essa combinação faz com que a equipe ganhe mais carisma e ressignifica a interação entre os personagens. A trama se intensifica com a explosão do Kremlin, que coloca a IMF sob suspeita e leva à ativação do “Protocolo Fantasma”, desautorizando a agência. Essa situação cria uma crítica velada à culpabilidade estadunidense, mostrando como, mesmo em um país patriota, o sistema pode virar contra seus próprios agentes, transformando-os em fantasmas — vivos, mas invisíveis. A alegoria dos conflitos internacionais e seus desdobramentos políticos é habilmente arquitetada, evitando discursos armamentistas e concentrando-se na figura heróica, porém não santificada, de Ethan Hunt, um agente das sombras que não pertence a lugar algum. A parceria entre J.J. Abrams na produção e Brad Bird na direção resulta em uma fluidez aventuresca que mantém o ritmo constante. Cada cena contribui para a construção dos personagens, especialmente Ethan e sua equipe, e para a exploração dos múltiplos pontos de vista sobre os eventos em curso. Esse dinamismo culmina em uma das sequências de ação mais memoráveis da década de 2010: a escalada do Burj Khalifa. Tom Cruise, como showman da sétima arte, realiza a façanha sem dublês, e a cena é filmada de maneira magistral, com a câmera buscando magneticamente Ethan e incorporando o sentimento voraz de completude da missão. Missão: Impossível – Protocolo Fantasma reinventa, resgata e reestrutura as ideias da franquia, alocando cada uma em personagens, dispositivos ou problemáticas da trama. O filme traz elementos do noir, do classicismo e da corrida a pé do herói-vilão, utilizando perseguições como ferramentas do ambiente que tornam os personagens reais o suficiente para tomar decisões próprias. O design de produção esbelto evoca, de cenário em cenário, o tom de espionagem, comédia, sensualidade, tensão e adrenalina. Tudo está em seu devido lugar neste capítulo da franquia, estabelecendo a linguagem que será concretizada nos filmes subsequentes.
Crítica: A Mulher no Jardim | Collet-Serra e o Desafio de Fazer a Fantasia Florescer
Jaume Collet-Serra nunca teve a pretensão de reinventar o cinema — e talvez aí resida parte de seu charme. Seus filmes transitam entre o suspense e o entretenimento ligeiro com uma segurança rara, mesmo quando as histórias em si deixam a desejar. A Mulher no Jardim chega embalado por essa mesma lógica: uma experiência que não promete muito, mas que sabe exatamente até onde pode ir. O filme parte de uma premissa simples: uma figura enigmática aparece no quintal de uma casa, e tudo ao redor passa a girar em torno dela. É nesse espaço limitado que Collet-Serra consegue transpor sua identidade como cineasta. Ele trabalha todos os elementos e dispositivos da casa com inteligência, buscando nos cantos, corredores e objetos pequenos respiros de criatividade. Quando finalmente vemos a fantasia cruzar a porta e entrar de fato na casa, parece que estamos testemunhando não apenas um avanço na trama, mas um gesto de Collet-Serra em trazer sua própria visão para dentro do filme. Nesse sentido, há algo quase metalinguístico no embate entre direção e roteiro: enquanto Collet-Serra quer fazer a fantasia entrar no espaço fílmico, o roteirista Sam Estefanak parece renegá-la em seu texto, criando distâncias e ruídos que afastam a trama desse encantamento. O resultado é uma obra marcada por essa estranheza de tons — momentos que deveriam emocionar ou intrigar acabam caindo num vazio, deixando no espectador mais indiferença do que impacto. No fim, A Mulher no Jardim reafirma o que já sabemos sobre Collet-Serra: ele é um diretor que domina a forma, mesmo quando o conteúdo escapa por entre os dedos. Entre altos e baixos, o filme encontra momentos de encanto e estranhamento que, ainda que não deixem marcas profundas, confirmam seu talento para transformar pequenas ideias em entretenimento eficiente. É um filme que talvez não permaneça na memória, mas cumpre bem seu papel enquanto dura. No fundo, A Mulher no Jardim é menos sobre o mistério da figura no quintal e mais sobre o duelo silencioso entre um diretor que quer fazer a fantasia florescer e um roteiro que insiste em mantê-la do lado de fora.
Crítica – Revisão Missão: Impossível | O Ensaio da Nova Era
Selo: Arquivo IMF – capítulo 3 Impressionante o quanto percepções podem mudar da água pro vinho. Sobretudo no cinema — e não só no que diz respeito a “ruim” ou “bom” —, mas na capacidade de entender as diferentes linguagens cinematográficas. Isso é essencial para uma saga como Missão: Impossível, que desde seus primeiros capítulos foi marcada por visões autorais sobre uma figura tão complexa quanto a de Ethan Hunt. E pensar que, por muito tempo, eu dizia que a franquia só começava de fato no terceiro capítulo… afirmativa essa que, hoje, está completamente refutada. J.J. Abrams, ao lado dos roteiristas Alex Kurtzman e o falecido Roberto Orci (1973–2025), entrega um filme que parece mais interessado em desmontar o universo já estabelecido do que realmente aprofundá-lo. Não sabe como tratar Ethan como herói nem como espião. A humanização do personagem — que nas mãos de De Palma surgia como um paranoico enclausurado e, com John Woo, se transformava num herói canastrão e sedutor — aqui se resume a uma função narrativa: Ethan vira uma válvula de escape, uma engrenagem a serviço da estrutura. Tudo é tão apressado, de uma estilização vazia, com câmeras tremidas e enquadramentos que deixam personagens fora de quadro, que o filme inteiro parece uma longa e desesperada corrida entre o ponto A e o ponto B. Não há organicidade. Não há sensação de aventura. Apenas um filme refém de suas convenções e do estilo egóico de seu diretor, que parece preocupado em deixar sua marca visual a qualquer custo, mesmo que sem sentido dramático. Ainda assim, há pontos que funcionam. A estruturação de uma equipe ao redor de Ethan é um aceno à coesão que os próximos filmes desenvolverão melhor. Mas aqui, mesmo essa tentativa parece perdida no meio de tantas outras que não se desenvolvem. As ideias surgem, mas não conversam entre si. Parecem apenas passagens obrigatórias para justificar o avanço do roteiro. Há também algo a se destacar na construção do vilão. Philip Seymour Hoffman entrega um Owen Davian brutalmente eficiente. Um vilão que, apesar de ser quase um “facilitador” de terceiros, domina a cena, dita o tom e estrutura as sequências de ação para que gravitem ao seu redor — e não a Ethan. Ele é, sem dúvida, o personagem com mais identidade desse filme. A tentativa de humanizar Ethan vem por meio do relacionamento com Julia, interpretada por Michelle Monaghan. E mesmo sendo uma abordagem apressada, ela ganha alguma densidade nos momentos finais. A sequência de ação em que os dois se unem tem algo de balé, uma fisicalidade interessante que ao menos justifica a proposta do filme de colocar o amor como um risco e uma força motriz. Mesmo o “pé de coelho” — o grande dispositivo que movimenta os conflitos do filme — serve mais como uma desculpa funcional do que uma engrenagem narrativa que realmente instiga. A escolha de nunca revelar o que ele de fato faz até tem algo de interessante, quase como um MacGuffin à moda antiga, mas é uma solução tão preguiçosa quanto simbólica do que o filme propõe: mistério pelo mistério, sem substância. E não ajuda em nada a correlação quase infantil com Matrix que surge da associação automática da palavra “coelho”. Parece mais uma piscadela forçada do que uma referência criativa — mais uma prova de que, apesar da estética autoral, falta a esse capítulo um verdadeiro senso de inventividade. Por fim, Missão: Impossível 3 é um capítulo que tenta demais impor uma linguagem, mas esquece de contar uma história empolgante. Um filme desmembrado, sem ritmo, que grita sua regionalidade estadunidense e se contenta com um pastiche hollywoodiano qualquer. Muito diferente dos primeiros filmes que flertavam com Hitchcock, com o espaguete policial, com o estilismo de John Woo. É curioso pensar que, na mesma época, Tom Cruise protagonizava Guerra dos Mundos e Minority Report — obras muito mais coesas e criativas no uso da sua fisicalidade como ator. Aqui, o que sobra é um filme que carece de sentimento, mas que, ao menos, nos presenteia com um dos melhores vilões da franquia.
Crítica – Revisão Missão: Impossível | A Câmera em Chamas de John Woo
Selo: Arquivo IMF – Capítulo 2 Capítulo excitante da franquia, Missão: Impossível 2 escancara o estilo autoral e exagerado de John Woo dentro de um universo cinematográfico em constante reinvenção. É como em A Hora do Pesadelo, em que a fantasia se molda ao diretor da vez: cada filme traz um Freddy diferente, um tom distinto. Aqui, Ethan Hunt se desprende da paranoia noir de Brian De Palma e mergulha num universo que abraça o exagero, o fetiche e a fisicalidade como marcas de linguagem — com raladas visuais que remetem a Matrix, As Panteras e o próprio Woo em sua fase hollywoodiana. O roteirista Robert Towne — o mesmo de Chinatown — permanece na franquia, mas aqui seu texto ganha outra pulsação. Se no primeiro filme ele construiu um labirinto de incertezas, aqui a estrutura se curva à estética eloquente do diretor. Missão: Impossível 2 não nega o noir: ele estiliza, maximiza e explode esse universo investigativo com slow motions, closes dramáticos, pombas em câmera lenta e um gosto pelo balé da violência. Tudo é sentido — como espetáculo e como sensação. O filme ecoa o delírio afetado de A Outra Face, outro projeto hollywoodiano de Woo, onde a entrega performática de Nicolas Cage é canalizada como energia narrativa. Aqui, Tom Cruise entra nesse jogo com uma afetação diferente — menos caricata, mas igualmente carregada de intensidade. O gesto, o olhar, o movimento do cabelo ao vento: tudo em Ethan é amplificado para o épico. Woo transforma seus protagonistas em mitos coreografados — e Cruise topa dançar. A figura de Ethan Hunt também muda: mais sedutor, mais sacana, mais herói de ação romântico. A sensualidade em cena — com Thandie Newton e a tensão constante entre desejo e missão — traz um toque bondiano que cria uma nova dimensão emocional para Ethan. Seus traumas, sua busca por controle e até mesmo seu vilão refletem um homem que ainda sente, ainda hesita. E que, por isso, nos envolve. Missão: Impossível 2 é um corpo estranho dentro da franquia — não por destoar, mas por assumir com orgulho o exagero e a extravagância. É como se o filme se permitisse ser um delírio momentâneo, guiado mais pela forma do que pela lógica. Mas é justamente essa liberdade visual e narrativa que o torna inesquecível: a trama pode até parecer simples, mas o modo como ela é conduzida transforma cada sequência num espetáculo. Ele não busca coerência com os filmes ao redor — ele impõe sua presença com estilo, suor e câmera lenta.
Crítica- Revisão Missão: Impossível | O Enigma de De Palma
Selo: Arquivo IMF – Capítulo 1 Quando vi Missão: Impossível pela primeira vez, ainda adolescente, minha impressão era parecida com a de muita gente: o filme “chatinho” da franquia. Era comum ouvir que a saga começava de verdade no terceiro, com J.J. Abrams, e que os anteriores eram apenas aquecimentos formais para o que viria depois. Mas, revendo o longa de Brian De Palma agora, às vésperas do capítulo final da série, com mais bagagem e um olhar mais atento para o cinema de gênero, fica claro que Missão: Impossível (1996) é não só um marco estilístico como um feito e tanto para o cinema de espionagem — e para o cinema comercial americano dos anos 1990. De Palma transforma um projeto claramente comercial em mais uma extensão de sua linguagem autoral. Há um rigor visual constante, uma estilização marcada pela câmera subjetiva, pelos corpos suados, pelos olhares atravessados e pela tensão sexual que nunca se consuma — traços de um erotismo contido que o diretor domina com maestria desde Vestida para Matar. O filme se desenha como um noir contemporâneo: elegante, insinuante, sempre um passo à frente da própria trama. A relação entre Ethan Hunt (Tom Cruise) e Claire (Emmanuelle Béart) é um dos pilares dessa atmosfera. A química não resolvida entre os dois serve como campo simbólico de suspeita. A sensualidade casual do personagem de Cruise — num momento pós-Entrevista com o Vampiro em que o ator ainda trabalhava com certo mistério corporal — é peça-chave para o jogo de aparências. De Palma insinua mais do que mostra, e o desejo reprimido entre os dois personagens se transforma em arma dramática para desarmar o espectador e preparar a grande virada da narrativa. Só que, curiosamente, a revelação não é o ponto alto do filme. Ele funciona quase como bônus: o que realmente fascina é o caminho até ali — o modo como o filme manipula a dúvida e a ambiguidade a cada cena. Outro acerto está nos coadjuvantes: figuras construídas com traços quase caricatos, propositalmente, como se fossem dispositivos narrativos a serviço da paranoia. Cada um deles parece encarnar um papel de suspeito no tabuleiro: quanto mais evidentes suas características, mais alimentam o jogo de desconfiança que se instala em torno de Ethan — e, por extensão, do próprio espectador. Missão: Impossível (1996) é um filme meticuloso, com domínio absoluto da mise-en-scène e um senso de diversão que passa pela construção minuciosa de tensão e imprevisibilidade. Muita gente até hoje acusa o roteiro de ser “confuso” ou “bagunçado”, como se a lógica narrativa quebrada fosse um defeito — quando, na verdade, é uma das grandes virtudes do filme. O roteiro aposta em idas e vindas, lacunas e ambiguidades justamente para causar desorientação. De Palma transforma isso em linguagem: a dúvida não está só nos personagens ou no mistério central, mas no próprio modo como o filme se articula. Essa estrutura instável é o que sustenta o jogo de aparências. Não se trata de um começo tímido, mas de um filme com plena consciência de seu gênero e de suas ferramentas. Missão: Impossível é um thriller de espionagem de primeira linha, que trabalha a investigação, a construção do mistério e o uso da linguagem visual de maneira sofisticada. Em certos momentos, até conversa com o charme sensual e elegante dos melhores James Bond, mas sem copiar sua fórmula — e sim adaptando seus códigos para uma narrativa de desconfiança e manipulação constante. De Palma evoca Hitchcock, brinca com o cinema clássico de intrigas e abre caminho para o que se tornaria uma das franquias mais longevas e inventivas do gênero. O primeiro capítulo é cinema de autor infiltrado no blockbuster — e funciona como uma bomba silenciosa: precisa, elegante e pronta para explodir na hora certa.
Crítica: Thunderbolts – Válvulas de escape para um sistema quebrado
Thunderbolts, dirigido por Jake Schreier, pode ser encarado como uma das mais potentes alegorias do universo Marvel. Ao reunir figuras vistas antes como coadjuvantes ou descartáveis, o filme constrói um painel de anti-heróis cujas dores e funções se sobrepõem à típica lógica messiânica do gênero. Aqui, os personagens são ferramentas: engrenagens de um sistema maior, usadas até o limite. Mas também são as conclusões emocionais desse mesmo sistema — a prova de que nada se sustenta sem os corpos que carregam os traumas e as ruínas da missão. Jake Schreier entende a complexidade dessa composição e organiza seus personagens como válvulas simbólicas. Cada um deles representa uma quebra — seja ética, moral, física ou emocional. Ao contrário de obras como Eternos ou Viúva Negra, que tentam abordar personagens quebrados, mas se limitam em suas estruturas convencionais, Thunderbolts ousa usar a fantasia como veículo direto para a alegoria. É um filme que não tem medo de tornar a simbólica parte do espetáculo. A estética acompanha essa visão. Os enquadramentos e a decupagem reforçam o sentimento de solidão e de distanciamento — mesmo quando os personagens dividem o quadro, há uma sensação constante de ruptura. Florence Pugh é o centro vital do longa. Sua performance como Yelena carrega um peso dramático genuíno, sem abrir mão de um carisma que torna cada cena sua magnética. Ela equilibra o riso e a dor com precisão, entregando uma personagem que entende a contradição de ser heroína num mundo que a tratou como descartável. Ao seu lado, Lewis Pullman (Bob) oferece uma energia tragicômica que funciona não apenas como alívio, mas como espelho emocional do que está em jogo. Juntos, e com os demais integrantes do time, criam uma dinâmica que não busca a coesão tradicional de um grupo heroico, mas sim a colisão inevitável de feridas. A trilha sonora, assinada pelo coletivo Son Lux – o mesmo por trás de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo -, também contribui para a dimensão existencial de Thunderbolts. Há uma sintonia perceptível entre os dois filmes: ambos se valem da fantasia para discutir temas profundos ligados à identidade, à solidão e à saúde mental. Em Thunderbolts, a música não funciona apenas como pano de fundo, mas como prolongamento sensorial do estado interno dos personagens. Quando se escuta a trilha isoladamente, já se percebe sua carga emocional; mas é ao revê-la em momentos específicos do filme que o esmero da equipe se revela. Há um cuidado nítido em transformar o som em parte do discurso temático — uma ponte entre o universo quebrado dos heróis e suas tentativas de reconstrução interior. Thunderbolts se destaca como obra porque enxerga seus personagens para além do espetáculo. O que move essa equipe não é a grandiosidade dos poderes, mas a tentativa desesperada de resolver traumas que os definem mais do que qualquer uniforme. Há humor, há ação, há mistério — mas tudo gira em torno de uma certeza: a de que mesmo as peças mais frágeis e aparentemente descartáveis seguem sendo a base silenciosa sobre a qual todo o sistema se equilibra.
Crítica | Pecadores: Quando a Arte Salva e o Blues Resiste
Blues, hip hop, jazz, mambo, soul, funk, reggae — Pecadores é um filme que pulsa como uma batida ancestral, vibrando através das bordas da tela e rasgando as noções de tempo e espaço. É como se a história, carregada de dor, luta e celebração, precisasse transbordar as imagens para existir plenamente. Ryan Coogler cria aqui não apenas um drama, não apenas uma fantasia, não apenas uma crítica social: ele orquestra tudo isso em uma fluidez rara, onde cada cena parece feita para alimentar a próxima, e cada ritmo atravessa o outro sem pedir licença. Há uma cena, em especial, que cristaliza essa ambição: personagens se encontram em um cruzamento de mundos, em que as palavras se tornam quase desnecessárias — os gestos, a música e a tensão dos olhares dizem tudo. É um momento que resume não apenas o enredo, mas a força de Pecadores como obra cinematográfica e política. Coogler, mais uma vez, prova que sabe transformar a dor histórica em arte sem romantizá-la, e que entende que a fantasia só é potente quando está enraizada no real. Outro momento absolutamente inesquecível vem com um plano-sequência que atravessa tempos, ritmos e linguagens, rasgando o véu do tempo como quem rasga também o tecido social. A música, nascida de um instrumento quase profano — em conflito direto com a religião que rege a vida do pai do protagonista —, explode em potência emocional. Não há como não se arrepiar vendo esse choque entre tradição, fé e liberdade artística se materializar em cena. Uma das melhores sequências dos últimos anos, independente de gênero, pela força bruta de sua execução e pelo que carrega de símbolo e ruptura. Outro ponto que impressiona é como Coogler trabalha a construção dos personagens. Cada figura dentro da trama carrega suas próprias marcas e contradições, mas o diretor costura seus dramas de maneira orgânica, permitindo que eles dialoguem entre si mesmo nas fissuras, nas tensões silenciosas, nos gestos pequenos. Essa habilidade se intensifica ainda mais quando a narrativa se fecha em um único ambiente — a partir daí, a tensão cresce de maneira quase insuportável, e as relações, antes sutis, explodem em confrontos inevitáveis. O espaço físico diminui, mas o filme só expande em potência emocional. Assistir Pecadores também me levou a mergulhar mais fundo na ficção especulativa — essa vertente que mistura fantasia, ficção científica e horror para tratar de realidades sociais profundas. Dentro dessa proposta, faz todo o sentido a maneira como o filme constrói sua própria realidade: mágica e brutal ao mesmo tempo, onde a negritude, a reparação histórica e o horror social se entrelaçam em cada gesto, em cada escolha estética. Há muito aqui da potência mística e alegórica que vimos em Lovecraft Country, série da HBO cancelada após sua primeira temporada por motivos nunca muito bem esclarecidos, como se a própria radicalidade da narrativa tivesse ultrapassado certos limites de conforto. Também lembrei muito de Nope, de Jordan Peele, onde a ficção atinge sua máxima potência para dialogar com críticas sociais tão contundentes quanto inescapáveis. O trabalho de som e montagem impressiona ao criar passagens quase hipnóticas entre realidades. A fotografia, vibrante e suada, não tem medo das sombras — e, nelas, encontra a beleza e a melancolia necessárias para sustentar a jornada dos personagens. As interpretações, cruas e cheias de nuances, fazem a utopia e a tragédia caminharem lado a lado. Pecadores é, no fundo, sobre resistir — a apagamentos, a convenções, a limitações narrativas. É sobre o Blues. Sobre a arte. E sobre como ambos salvaram vidas — naquela época e ainda hoje, quando filmes como esse, resgatando histórias, vozes e ritmos esquecidos ou silenciados, continuam salvando outras tantas. Ryan Coogler faz aqui algo especial demais. Um filme que pulsa, sangra e canta. E que nos lembra, com cada nota, que a memória é também um ato de sobrevivência.
Crítica | Minecraft – O Filme: Aventura cúbica com alma de infância
Fui assistir ao live-action de Minecraft mais pela curiosidade do que entusiasmo – afinal, como transformar um jogo tão aberto, feito de bloquinhos e possibilidades infinitas, em uma narrativa com começo, meio e fim? Além de não gostar pessoalmente do jogo, apesar de mais da metade de meus amigos já terem chamado para jogar. A surpresa veio logo nas primeiras cenas, quando percebi que o filme não estava preocupado em ser fiel ao jogo ao pé da letra, mas sim em capturar o espírito dele: a criatividade, a aventura e, acima de tudo, a brincadeira coletiva. Que era o que via nos meus amigos e achava bem legal ver eles animados jogando e criando. Dirigido por Jared Hess (Napoleon Dynamite), o filme acompanha um grupo de adolescentes que, por acidente, vai parar dentro do universo de Minecraft. Lá, eles precisam unir forças com Gabriel (Jason Momoa, num papel mais doce e protetor do que o habitual) para impedir a destruição do Overworld. É curioso como Momoa já havia explorado algo semelhante em Slumberland, da Netflix, onde conduzia uma criança por um mundo fantástico. Se Uma Aventura LEGO brincava com a metalinguagem e a quebra da narrativa para revelar um mundo fora do brinquedo, Minecraft – O Filme faz algo semelhante, só que de maneira mais sutil e intrínseca. Aqueles personagens têm problemas no mundo real — familiares ausentes, sentimentos de inadequação, solidão. Mas, diferente do que se espera, o jogo não é uma fuga. Ele é o meio que conecta essas pessoas. O lugar onde elas se encontram, se escutam e se fortalecem. Lembrei muito de A Pedra Mágica (2009), do Robert Rodriguez, que vi quando era criança. Também ali, a fantasia surgia como um reflexo do que sentíamos por dentro, e não como uma fuga. assisti Minecraft ao lado de uma criança, e foi uma experiência bem divertida. A sala estava parcialmente cheia, era bonito ver como as crianças reagiam – rindo, torcendo, ficando tensas nas sequências finais. Tudo com respeito com a experiencia do próximo. O filme acerta em não reforçar estereótipos antigos sobre quem joga videogame. Em vez da visão ultrapassada do jogador como alguém solitário ou agressivo, o que se mostra aqui é outra coisa: pessoas que encontram companhia, criatividade e até coragem nesses mundos imaginários. E que, no fim das contas, preferem viver a vida real, mas uma vida em que não se sintam sozinhas. Minecraft – O Filme pode não revoluciona em nada. Sua trama é simples, e alguns momentos são claramente voltados para agradar os fãs do jogo. Mas há um coração pulsando forte ali. E talvez o maior elogio que se possa fazer seja esse: é um filme que entende que brincar, sonhar e criar são formas de estar com o outro.