Selo: Arquivo IMF – Capítulo 1
Quando vi Missão: Impossível pela primeira vez, ainda adolescente, minha impressão era parecida com a de muita gente: o filme “chatinho” da franquia. Era comum ouvir que a saga começava de verdade no terceiro, com J.J. Abrams, e que os anteriores eram apenas aquecimentos formais para o que viria depois. Mas, revendo o longa de Brian De Palma agora, às vésperas do capítulo final da série, com mais bagagem e um olhar mais atento para o cinema de gênero, fica claro que Missão: Impossível (1996) é não só um marco estilístico como um feito e tanto para o cinema de espionagem — e para o cinema comercial americano dos anos 1990.
De Palma transforma um projeto claramente comercial em mais uma extensão de sua linguagem autoral. Há um rigor visual constante, uma estilização marcada pela câmera subjetiva, pelos corpos suados, pelos olhares atravessados e pela tensão sexual que nunca se consuma — traços de um erotismo contido que o diretor domina com maestria desde Vestida para Matar. O filme se desenha como um noir contemporâneo: elegante, insinuante, sempre um passo à frente da própria trama.

A relação entre Ethan Hunt (Tom Cruise) e Claire (Emmanuelle Béart) é um dos pilares dessa atmosfera. A química não resolvida entre os dois serve como campo simbólico de suspeita. A sensualidade casual do personagem de Cruise — num momento pós-Entrevista com o Vampiro em que o ator ainda trabalhava com certo mistério corporal — é peça-chave para o jogo de aparências. De Palma insinua mais do que mostra, e o desejo reprimido entre os dois personagens se transforma em arma dramática para desarmar o espectador e preparar a grande virada da narrativa. Só que, curiosamente, a revelação não é o ponto alto do filme. Ele funciona quase como bônus: o que realmente fascina é o caminho até ali — o modo como o filme manipula a dúvida e a ambiguidade a cada cena.
Outro acerto está nos coadjuvantes: figuras construídas com traços quase caricatos, propositalmente, como se fossem dispositivos narrativos a serviço da paranoia. Cada um deles parece encarnar um papel de suspeito no tabuleiro: quanto mais evidentes suas características, mais alimentam o jogo de desconfiança que se instala em torno de Ethan — e, por extensão, do próprio espectador.

Missão: Impossível (1996) é um filme meticuloso, com domínio absoluto da mise-en-scène e um senso de diversão que passa pela construção minuciosa de tensão e imprevisibilidade. Muita gente até hoje acusa o roteiro de ser “confuso” ou “bagunçado”, como se a lógica narrativa quebrada fosse um defeito — quando, na verdade, é uma das grandes virtudes do filme. O roteiro aposta em idas e vindas, lacunas e ambiguidades justamente para causar desorientação. De Palma transforma isso em linguagem: a dúvida não está só nos personagens ou no mistério central, mas no próprio modo como o filme se articula. Essa estrutura instável é o que sustenta o jogo de aparências.

Não se trata de um começo tímido, mas de um filme com plena consciência de seu gênero e de suas ferramentas. Missão: Impossível é um thriller de espionagem de primeira linha, que trabalha a investigação, a construção do mistério e o uso da linguagem visual de maneira sofisticada. Em certos momentos, até conversa com o charme sensual e elegante dos melhores James Bond, mas sem copiar sua fórmula — e sim adaptando seus códigos para uma narrativa de desconfiança e manipulação constante. De Palma evoca Hitchcock, brinca com o cinema clássico de intrigas e abre caminho para o que se tornaria uma das franquias mais longevas e inventivas do gênero. O primeiro capítulo é cinema de autor infiltrado no blockbuster — e funciona como uma bomba silenciosa: precisa, elegante e pronta para explodir na hora certa.