Não seria exagero ao dizer que Ryan Coogler opera um dos grandes musicais dos últimos anos em Pecadores. É impossível assistir à segunda metade do filme e não pensar em Amor, Sublime Amor, por exemplo. Se na história de Maria e Tony, o conflito entre as gangues é pautado pela questão dos imigrantes – e pela gentrificação, na versão de Spielberg -, o filme estrelado por Michael B. Jordan coloca humanos e vampiros em uma luta contra o apagamento histórico nos anos 1930, no Mississipi. Ambos são, com suas particularidades, tragédias em suas temáticas.
Assim como fez em todos os seus trabalhos anteriores, Coogler aborda a a história pop com referências e significados que vão além do mainstream. Até hoje impressiona a forma como ele conseguiu atualizar a trama de Rocky com Creed, simplesmente mudando o foco dos bairros da Filadélfia. Pantera Negra é, ainda, um dos grandes sucessos de público e crítica da Marvel – vencedor de quatro Oscars – por injetar discursos sociais tanto no herói quanto no vilão e encher de usar referências culturais distintas ao longo da narrativa. Ambas as produções contam com um fator determinante para isso: a música do compositor sueco Ludwig Göransson. Em Pecadores, essa parceriadá um passo além.
História do blues e a magia espiritual
Em uma coletiva de imprensa que o Omelete participou em janeiro, o diretor de Pecadores afirmou que o filme é “sobre a música americana mais do que qualquer outra coisa”; e contou que ele e o Göransson fizeram o “Caminho do Blues”, no Mississipi, além de visitar a cidade natal de B.B. King. O início do filme, com cânticos gospel em uma igreja e músicos de rua na cidade onde Stack e Smoke (ambos Michael B. Jordan) retornam para abrir seu juke joint, são a comprovação dessa jornada.
Os juke joint eram bares e espaços no limite das cidades, onde as pessoas negras podiam ir se divertir, dançar, apostar e beber clandestinamente durante a Lei Seca, que durou de 1920 até 1933. Eram espaços vistos como locais do pecado e do demônio pela sociedade religiosa cristã do estado, principalmente pelas mulheres que frequentavam as igrejas e viam os maridos indo curtir nesses ambientes. Quem tocava nesses bares? Os artistas de rua. Artistas esses que viajavam pelas cidades e tocavam nas ruas para tentar chamar a atenção dos donos dos juke joints, esperando um convite com mais dinheiro do que os centavos que ganhavam nas calçadas. Delta Slim, o músico de Delroy Lindo no filme é a encarnação dessas pessoas. Charley Patton, “pai” do Delta Blues, um subgênero da região do Mississipi, é visto como herói por Sammy (Miles Canton).
Outro elemento que ocupa grande parte da história são os campos de algodão, e é de lá que parte uma “disputa” de onde o blues surgiu. Os religiosos dizem que ele nasceu na igreja, no gospel, mas outros apontam que foi na lavoura que o estilo musical tomou forma com os violões e a gaita. De lá, os artistas partiam para tentar a vida nas cidades, assim como acontece com Sammy.
Nesse contexto há também uma das grandes histórias do blues: Robert Johnson, músico que era visto como um guitarrista/violeiro comum, para um ano depois voltar como um dos maiores de todos. A lenda diz que Johnson fez um acordo com o próprio diabo para conseguir todo o seu talento e a partir dali se tornou um dos maiores nomes do blues, mesmo tendo poucas músicas e vivendo apenas alguns anos depois do sucesso. Sammy segue estes mesmos passos.
Essa lenda, inclusive, pode ser explicada através do hoodoo, uma tradição espiritual do folclore afro-americano baseada em magia e personificada no filme por Annie (Wunmi Mosaku). No hoodoo existem histórias sobre encruzilhadas, criaturas que oferecem conhecimentos e rituais que dariam mais controle aos agraciados. Em um ambiente como o Mississipi, cheio de violência e onde afro-americanos poderiam ser linchados e mortos a qualquer momento por supremacistas ou apoiadores da Ku-Klux-Klan, o hoodoo era uma e a ideia de poder e conforto para aqueles que o seguiam. Com essa ideia, Coogler criou o momento mais incrível de Pecadores.
Quando Sammy se apresenta pela primeira vez no juke dos irmãos Stack e Smoke, a música carrega os presentes em uma viagem que transcende o espaço e o tempo, juntando “passado, presente e futuro” em um só momento. Usando um plano-sequência, Coogler passeia no meio de diversas figuras que comandam aquele transe da música, apresentando um guitarrista no melhor estilo de Prince ou Lenny Kravitz, junto com um DJ, figuras com vestimentas tradicionais de religiões de matizes africanas, tribais, chinesa – acompanhando o casal imigrante do país na história -, funk, soul, hip hop, Go-Go, tudo em um só lugar e em um só momento. Isso, claro, chama a atenção dos vampiros da história. Esse poder de união logo se torna alvo de Remmick (Jack O’Connell) e sua gangue, em uma referência sobre o apagamento histórico da cultura afro-americana.

Esquecimento financiado pelo estado e resiliência da arte
Essas críticas até hoje se estendem, por exemplo, ao título de “Rei do Rock” para Elvis, sendo que ele seguiu influências da igreja e de outros artistas da comunidade afro-americana do Mississipi e do rock.
A história dos EUA mostra que sempre existiu um movimento para esquecer os grandes expoentes da cultura negra no país, liderado por autoridades como o FBI na figura de seu diretor por 38 anos, J. Edgar Hoover. De líderes como Martin Luther King, Malcolm X e Medgar Evers e vozes como Sam Cooke, todos assassinados, até outros artistas que foram “substituídos” por algum outro branco, esse processo foi amplamente financiado por setores do governo, que até hoje são acusados de continuá-lo.
Isso nos leva direto ao final do filme. Após a luta contra essas criaturas e uma possível salvação de Sammy pelo pai na igreja, a cena pós-créditos de Pecadores nos coloca 60 anos depois, já na década de 1990, com o músico agora tocando em seu próprio bar de blues, em Chicago. Quem vive Sammy nessa parte da história – e uma das maiores surpresas do filme – é ninguém mais, ninguém menos que Buddy Guy, um dos maiores nomes da história do blues. Assim como Sammy, Robert Johnson e tantos outros, a história deles e do guitarrista continuam criando interseções. Buddy Guy também saiu de um campo de algodão e foi para Chicago na década de 1950. A plantação não dava mais certo para Buddy e ele queria viver da própria música. Lá, ele conheceu outro astro do blues, Muddy Waters, que o viu tocar em um bar e logo deu uma oportunidade para ele.
Ao colocar o próprio Buddy Guy como Sammy e suas cicatrizes no rosto após a luta contra os vampiros, Ryan Coogler estabelece uma conexão direta com a nossa realidade. Stack vampiro, visita o, agora famoso, Sammy para contar que ele foi protegido por um acordo entre os irmãos. Por meio da música, cultura e histórias populares, Coogler transcende o cinema tradicional de Hollywood para mostrar um senso de comunidade e respeito, em uma história repleta de astros, mas que nunca esquece da própria origem ou da resiliência da arte.